Cultura, clima, Manaus, periferia e Amazônias no trabalho da artista, produtora e mobilizadora Elisa Maia
“Quem bota fé que a COP vai mudar alguma coisa?” A pergunta de Elisa Maia, artista e produtora amazonense, ecoou no calor sufocante de Manaus, há um ano, em setembro de 2024, quando a cidade ardia sob a fumaça de mais de 20 mil focos de queimadas. Não foi uma frase solta. Ela virou guia da programação do festival Até o Tucupi, que Elisa coordena, e reafirmou a potência da cultura como parte da resposta à crise climática. Também foi um grito nascido da realidade de mais de 700 mil pessoas atingidas pela seca extrema no estado, enquanto discursos oficiais transformavam a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), prevista para novembro de 2025, em Belém, numa promessa de salvação que nunca chega.
Pouco mais de um ano depois desse questionamento, em 19 de setembro de 2025, Elisa lançou seu novo trabalho, a música e o videoclipe “Quando Sai”. Uma obra que não pede licença. Convoca a pôr para fora, com profundidade, o que precisa ser dito. Fala direto das urgências, do cansaço diante das contradições e do vazio do “desabar” de mundos, pessoais e coletivos. “Minhas músicas têm falado sobre um mundo que não dorme pela angústia. E quem vive na Amazônia sabe o que é sofrer insônias sufocantes, respirando fumaça, dançando no caos”, explica Elisa.
O lançamento de ‘Quando Sai’ acontece em um momento repleto de contradições, que precisam ser ditas. A cultura vem sendo usada como vitrine para vender a Amazônia como espetáculo, um produto embalado para consumo. No Pará, a mineradora Vale tenta lavar a própria imagem, marcada por crimes e violações, com shows milionários, como o palco flutuante erguido em Belém no dia 17 de setembro, sem público, apenas para as câmeras. Em Manaus, a prefeitura repete a lógica com o festival “Sou Manaus”, milionário e sem transparência, realizado entre 5 e 7 de setembro. Promessas vazias de “desenvolvimento” embalam um marketing que trata a Amazônia como cenário. “Todas as coisas que eu amava acreditar. Soltas palavras no vento se vão”, canta Elisa em “Quando Sai” e conectam essas contradições expostas.
Nascida e criada na Cidade de Deus, na zona norte de Manaus, Elisa vem de um território potente, mas quase sempre retratado pelo viés da violência. A maior periferia da Amazônia e da quarta do Brasil, com 55,8 mil moradores, segundo de Censo 2022. O cotidiano revela a face mais dura do racismo ambiental, marcada por desigualdade urbana, ausência de políticas públicas e vulnerabilidade ampliada pela crise climática.
É desse território amazônico que Elisa enraíza sua trajetória, com mais de 15 anos como produtora, cantora e compositora, e sustenta o contraponto às narrativas hegemônicas sobre a Amazônia. “Durante muito tempo, eu não me via nas narrativas de uma Amazônia que eu não vivia. Cresci na zona norte de Manaus e, quando você precisa pegar duas horas de trânsito para chegar ao centro, respirando fumaça, sentindo calor sufocante e batalhando para viver de cultura, entende que a crise climática e a falta de políticas públicas não são uma discussão abstrata. É a sua realidade diária”, reforça Elisa.
As produções de Elisa convidam para olhar para o presente de uma Amazônia, que também é urbana, complexa e desigual. Estudo do Projeto Amazônia Legal Urbana, publicado pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS), mostra que Manaus tem o terceiro pior IDHM entre as capitais do país e que os impactos do aquecimento agravam desigualdades raciais, étnicas e de gênero em saúde, moradia e segurança alimentar. Mas diante desse cenário Elisa insiste: “É preciso ter arte e felicidade no meio disso. Não só quando tudo acabar, mas agora, enquanto resistimos e criamos outras possibilidades”.
sol de setembro
Não por acaso, o calor é personagem central em suas produções. Setembro, mês mais seco da Amazônia, virou para ela um marco artístico e político. Desde 2020, Elisa escolhe esse período extremo para lançar novos trabalhos. O refrão de “Sol de Setembro”, que inicia esse ciclo de lançamentos anuais, dispara: “Sofre bem mais, quem sofre ao sol de setembro no Norte”. Os momentos de lançamento também não são casuais. Em 2024, foi nesse mês que foi anunciado o Até o Tucupi, festival com quase duas décadas de existência e que naquele ano pautou o Clima como tema central.
Em 2025, além da nova música, Elisa lançou, no dia 16 de setembro, a 4ª edição do Festival Somas, dedicado ao fortalecimento de mulheres e da comunidade trans na Amazônia. O Somas acontece de 2 a 4 de outubro, em Manaus, com programação gratuita que combina shows, oficinas, painéis e rodas de conversa, dando um passo concreto para a formação, a visibilidade e o fortalecimento da cena na região.
Em seu trabalho como cantora e compositora, a discografia de Elisa é, em si, uma forma de narrar e provocar, com muita sensibilidade, o pertencimento amazônico. Desde o álbum de estreia, “Ser da Cidade” (2013), ela recusa o estereótipo da floresta intocada e canta a Amazônia urbana, atravessada por contradições. Agora, em “Quando Sai”, as imagens e a poesia revelam uma Manaus não óbvia. Uma metáfora de colapso e recomeço. É política cantada na primeira pessoa.
Mas renascer exige mais que metáfora. Exige, entre outras coisas, política pública. Os trabalhos de Elisa, como o Festival Somas e Até o Tucupi, reforçam que não se pode falar em “desenvolvimento” sem fortalecer a vida e o trabalho de pessoas negras, mulheres, pessoas LGBTQIAP+, moradores de periferias, povos indígenas e quilombolas. “São esses corpos que sentem primeiro e com mais força os impactos da crise climática e da ausência de políticas sociais: sol impiedoso, casas alagadas, ar irrespirável, trajetos intermináveis de ônibus”, reforça.
O trabalho de Elisa nasce da Amazônia. Fala com quem vive nela e com o mundo. Sem precisar recorrer a termos regionais para “provar” que é daqui. É da Amazônia e, ao mesmo tempo, vai além dela. É música e produção brasileiras que afirmam a conexão com o mundo e o pertencimento ao território. “Às vezes é preciso dizer o óbvio, mas precisamos construir espaços de diálogo para enfrentar as crises, sejam pessoais ou globais. Cultura é central nesse enfrentamento. Toda ação que faço, mesmo a artística, envolve muita gente, porque a ação coletiva é sempre necessária”, aponta Elisa.
Esse horizonte coletivo tem endereço e nome, Coletivo Difusão, que Elisa mobiliza e possui 18 anos de ações. Fundado em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, em Manaus, o Difusão articula cultura, comunicação popular e direitos humanos para ocupar ruas e redes, mobilizar e pressionar políticas públicas. Ao conectar periferias de Manaus a outras cidades da Amazônia, fortalece o trabalho de quem faz cultura e produz respostas concretas às crises. É nessa roda que “Quando Sai”, obra da Elisa, ganha corpo. Nasce do comum para disputar rumos. Para a Amazônia deixar de ser cenário, a saída vem daqui, em ação coletiva. O resto é vitrine.